sábado, 10 de dezembro de 2011

Para relacionar o Catch à UFC

Le catch, Pigalle, Paris


MITOLOGIAS
Roland Barthes

I
O MUNDO DO CATCH[1]

". . A verdade enfática do gesto nas grandes circunstâncias da vida"

Baudelaire


A virtude do catch é a de ser um espetáculo excessivo. Existe nele uma ênfase que devia ser a dos espetáculos antigos: Aliás, o catch é um espetáculo de ar livre, pois o que constitui o essencial do circo ou da arena não é o céu, (valor romântico reservado às festas mundanas), é o caráter denso e vertical dos espaços luminosos; do fundo das salas mais imundas de Paris, o catch participa da natureza dos grandes espetáculos solares, teatro grego e touradas: aqui e acolá, uma luz sem sombra elabora uma emoção sem disfarce.

Muita gente acha que o catch é um esporte ignóbil. O catch não é um esporte, é um espetáculo, e é tão ignóbil assistir a uma representação da Dor no catch, como ao sofrimento de Arnolfo ou de Andrômaca. Existe, evidentemente, um falso catch, pomposo, com as aparências inúteis de um esporte regular; mas esse não tem qualquer interesse. O verdadeiro catch, impropriamente chamado catch-amador, realiza-se em salas de segunda classe, onde o público adere espontaneamente à natureza espetacular do combate, como o público de um cinema de bairro. Essa mesma gente, em seguida, indigna-se por o catch ser um esporte falseado (o que, aliás deveria restringir a sua ignomínia). Ao público pouco importa em absoluto que o combate seja falseado ou não: e ele tem toda a razão. Entrega-se à primeira virtude, do espetáculo: abolir qualquer móbil ou conseqüência; o que lhe interessa é o que se vê, e não o que crê.

Este público sabe distinguir perfeitamente o catch do boxe; sabe que o boxe é um esporte jansenista, baseado na demonstração de uma excelência; pode-se apostar no resultado de um combate de boxe: no catch, isso não teria sentido. O match de boxe é uma história que se constrói sob o olhar do espectador; no catch, pelo contrário, cada momento é inteligível, prescindindo do desenvolvimento. O espectador não se interessa pelo progresso de um destino, espera a imagem momentânea de certas paixões. O catch exige, portanto, uma leitura imediata de significados justapostos, sem que seja necessário ligá-los. O futuro racional do combate não interessa ao amador de catch, ao passo que, pelo contrário, uma luta de boxe implica sempre uma ciência do futuro. Por outras palavras, o catch é uma soma de espetáculos, sem que um só seja uma função: cada momento impõe o conhecimento total de uma paixão que surge reta e só, sem jamais se estender em direção a um resultado que a coroe.

Assim, a função de um lutador de catch não é ganhar, mas executar exatamente os gestos que se esperam dele. Diz-se que o judô contém uma parte secreta de simbolismo; mesmo na eficiência, trata-se dê gestos contidos, 'precisos, mas curtos, desenhados corretamente, mas apenas traçados, sem volume. O catch, pelo contrário propõe gestos excessivos, explorados até ao paroxismo da sua significação. No judô, o lutador mal aflora o chão, rebola sobre si mesmo, desvia-se, esquiva a derrota, ou, se esta for evidente, abandona imediatamente a luta; no catch, o lutador prolonga exageradamente a sua posição de. derrota, caído, impondo ao público o espetáculo intolerável da sua impotência.

Esta função de ênfase é a mesma do teatro antigo, cuja força, língua, e acessórios (máscaras e coturnos) concorriam para fornecer a explicação exageradamente visível de uma Necessidade. O gesto do lutador de catch vencido, significando uma derrota que ele, em vez de ocultar, acentua e mantém como uma nota de órgão, corresponde à máscara antiga encarregada de significar o tom trágico do espetáculo. No catch, como nos teatros antigos, não se tem vergonha da dor, sabe-se chorar, saboreiam-se as lágrimas.

Cada signo do catch é, pois, dotado de uma limpidez total, visto que tudo deve ser compreendido no próprio instante em que se realiza. A evidência dos papéis assumidos pelos lutadores é de tal modo acentuada, que se impõe ao público assim que estes entram no ringue. Como no teatro, cada tipo físico exprime, em excesso, a tarefa a cumprir pelo combatente. Thauvin, qüinquagenário obeso e flácido, cuja hediondez assexuada inspira sistematicamente apelidos femininos, expõe, na sua carne, as características do ignóbil, visto que seu papel é figurar o que no conceito clássico do "salaud”[2] (conceito-chave de todos os combates de catch) se apresenta como organicamente repugnante. O nojo voluntariamente inspirado por Thauvin é, assim, particularmente completo enquanto signo: a fealdade não só serve para significar a baixeza, mas ainda coincide com uma qualidade particularmente repulsiva da matéria: a flacidez esbranquiçada de uma carne morta (o público chama Thauvin "la barbaque”[3]) de modo que a condenação apaixonada da multidão já não se elabora a partir de um juízo, mas forma-se no mais profundo de suas entranhas. O público adere, assim, untuosamente conforme à sua aparência física inicial: os seus atos corresponderão perfeitamente à viscosidade essencial do seu personagem.

O corpo do lutador é, assim, a primeira chave do combate. Sabe-se, desde o início, que todos os atos de Thauvin, as suas traições, crueldades e covardias, não decepcionarão a primeira imagem do ignóbil que ele apresenta: pode-se contar com ele para executar inteligentemente, e até ao fim, todos os gestos de uma certa baixeza informe, e para preencher assim a imagem do mais repugnante dos "salauds": o "salaud-pieuvre”[4]. Os lutadores de catch têm portanto um físico tão peremptório quanto o das personagens da Comédia italiana, que revelam, aberta e antecipadamente, pelos seus trajes e atitudes, o conteúdo futuro do seu papel: assim como Pantalão pode apenas ser um "corno" ridículo, Arlequim um criado astucioso, e o Doutor um pedante imbecil, assim Thauvin será sempre o traidor ignóbil, Reinières (louro grande, de corpo mole e cabelos desgrenhados) a imagem perturbante da passividade, Mazaud (galinho arrogante) a da fatuidade grotesca, e Orsano (exibicionista efeminado que aparece desde o início num roupão azul e rosa) a imagem duplamente picante de uma "salope"[5] vingativa (pois não penso que o público do Elysée-Montmartre conheça o Littré e considere o termo "salope" como masculino). O físico dos lutadores de catch institui portanto um signo de base, contendo, em germe, todo o combate. Germe esse que prolifera, pois a cada momento do combate, a cada situação, o corpo do lutador oferece ao público o maravilhoso divertimento do encontro espontâneo entre uma compleição e um gesto. As diferentes linhas de significação esclarecem-se umas às outras e constituem o mais inteligível dos espetáculos. O catch assemelha-se a uma escrita diacrítica: além da significação fundamental do seu corpo, o lutador dispõe de explicações episódicas, mas sempre bem vindas, ajudando a leitura do combate com seus gestos, atitudes e mímicas, que levam a intenção à sua máxima evidência. Nuns casos, o lutador triunfa com um ricto ignóbil, dominando sob os joelhos o adversário leal; noutros ostenta para a multidão um sorriso suficiente, anunciador de uma vingança próxima; noutros ainda, imobilizado por terra, bate violentamente com os braços no chão, para significar a todos o caráter intolerável da situação; enfim, dispõe um complicado conjunto de signos destinados a dar a entender que ele encarna, justamente, a imagem sempre divertida do sujeito intratável explorando à saciedade o seu descontentamento.

Trata-se, portanto, de uma verdadeira Comédia Humana, onde as nuances mais sociais da paixão (fatuidade, direitos, crueldade refinada, sentido do "pagar") encontram sempre, e felizmente, o signo mais claro que as possa recolher, exprimir, e levar triunfalmente até aos confins da sala. Compreende-se que neste ponto, já não o interessa que a paixão seja autêntica ou não. O que o público reclama é a imagem da paixão e não a paixão em si. Como no teatro, no catch também não existe o problema da verdade. Em ambos, o que se espera é a figuração inteligível de situações morais habitualmente secretas Este esvaziamento da interioridade, em proveito dos seus signos exteriores, este esgotamento do conteúdo pela forma, é o próprio princípio da arte clássica triunfante. O catch é uma pantomima imediata, infinitamente mais eficaz do que a pantomima teatral, visto que o gesto do lutador não necessita de nenhuma fábula, de nenhum cenário, isto é, não necessita de nenhuma transferência, para parecer verdadeiro.

Assim, cada momento do catch é como um álgebra que revela instantaneamente a relação entre uma causa e seu efeito figurado. Existe, sem dúvida, nos amadores de catch, uma espécie de prazer intelectual em ver funcionar com tanta perfeição a mecânica moral: certos lutadores, bons comediantes, divertem tanto quanto uma personagem de Molière, pois conseguem impor uma leitura imediata da sua interioridade. Armand Mazaud, lutador que encarna o tipo arrogante e ridículo (tal como se diz que Harpagon é um "tipo") entusiasma sempre a sala com o rigor matemático das suas transcrições, levando o desenho dos seus gestos até ao extremo limite de seu significado, e dando ao seu combate o arrebatamento e a precisão de uma grande disputa escolástica, em que estão em causa simultaneamente, o triunfo do orgulho e a preocupação formal da verdade.

O que assim se oferece ao público é o grande espetáculo da Dor da Derrota, e da justiça. O catch apresenta a dor do homem com todo o exagero das máscaras trágicas - o lutador que sofre sob o efeito de um golpe considerado cruel (um braço torcido, uma perna esmagada) ostenta a expressão excessiva do sofrimento; mostra o rosto exageradamente deformado por uma angústia intolerável, tal como uma Pietà primitiva. Compreende-se perfeitamente que no catch o pudor esteja deslocado, visto que é contrário à ostentação voluntária do espetáculo, a essa Exposição da Dor que é a própria finalidade do combate. Deste modo, todos os atos geradores de sofrimento são particularmente espetaculares, como um gesto de um prestidigitador que mostre o seu jogo sem disfarce: não se compreenderia uma dor que aparecesse sem causa inteligível; um gesto secreto, efetivamente cruel, transgrediria as leis não escritas do catch, e não teria nenhuma eficácia sociológica, tal como um gesto louco ou parasita. Aqui, pelo contrário, o sofrimento é infligido com limpidez e convicção, pois é preciso que todo mundo constate, não só que o homem sofre, mas ainda, e sobretudo, compreenda por que sofre. Aquilo a que os lutadores chamam uma "chave", isto é, uma figura qualquer que faz com que o lutador permaneça indefinidamente imobilizado e à mercê do adversário, tem precisamente como função preparar o espetáculo do sofrimento, de um modo convencional, portanto inteligível, e instalar metodicamente as condições do sofrimento: a inércia do vencido permite que o vencedor (momentâneo) se instale na sua crueldade e transmita ao público essa preguiça aterradora, típica do torturador seguro da execução progressiva dos seus gestos. O catch é o único esporte que oferece uma imagem inteiramente exterior da tortura: esfregar violentamente o focinho do adversário impotente ou percorrer-lhe a coluna vertebral com um punho áspero, profundo e regular, executar pelo menos a superfície visual destes gestos. Mas, uma vez mais, trata-se apenas de uma imagem e o espectador não deseja o sofrimento real do lutador, saboreia unicamente a perfeição de uma iconografia. Não é verdade que o catch seja um espetáculo sádico: é apenas um espetáculo inteligível.

Existe outra figura ainda mais espetacular do que a "chave", é a "manchette", golpe com os antebraços, murro larvado no peito do adversário, produzindo um ruído frouxo, a queda mole e ostensiva do corpo vencido. Na "manchette" a catástrofe atinge a sua máxima evidência, de tal modo que, no seu ponto extremo, o gesto aparece apenas como um símbolo. É. ir longe demais, sair das regras morais do catch, onde todo o signo deve ser excessivamente claro, mas não deve deixar transparecer a sua intenção de clareza. E o público grita "marmelada", não porque lamenta a ausência de sofrimento efetivo, mas porque condena o artifício: como no teatro, sai-se do jogo tanto por excesso de sinceridade como por excesso de representação.

Já se mencionou o partido que os lutadores tiram de um certo estilo físico, composto e explorado para desenvolver perante o público uma imagem total da Derrota. A moleza dos grandes corpos brancos que se abatem no chão subitamente, ou desmoronam contra as cordas, esbracejando, a inércia dos lutadores maciços lamentavelmente jogados por todas as superfícies elásticas do ringue significa mais do que tudo, clara e apaixonadamente, a humilhação exemplar do vencido. Destituído de qualquer energia, o corpo do lutador não é mais que uma massa imunda esparramada no chão, suscitando frenesis de animosidade e júbilo. Temos aí um paroxismo de significação, à maneira dos espetáculos antigos, que não pode deixar de lembrar-nos o luxo de intenções dos triunfos latinos. Noutros momentos, é ainda uma figura antiga que surge da relação física entre os lutadores: figura do suplicante, do homem indefeso, dominado, de joelhos, braços erguidos sobre a cabeça, e lentamente vergado pela tensão vertical do vencedor. No catch, contrariamente ao que acontece no judô, a Derrota não é um signo convencional que se abandone logo que atingido: não é um resultado, mas um processo exibitório que retoma os antigos mitos do sofrimento e da humilhação pública: a cruz e o pelourinho. O lutador de catch é como que crucificado, em plena luz, à vista de todos. Ouvi dizer, a propósito de um lutador estendido no chão: "está morto o pobre Jesus, ali, crucificado", e estas palavras irônicas desvendam as raízes profundas de um espetáculo que executa os gestos das mais antigas purificações.

Mas o catch tem essencialmente como função minar um conceito puramente moral: a justiça. A Idéia de "pagar pelo que se faz" é essencial no catch, e o "faça-o sofrer" da multidão significa, antes de mais nada "faça-o pagar". Trata-se pois, é claro, de uma justiça imanente. Quanto mais a ação do "salaud" é vil, tanto mais a justa vingança alegra o público. Se o traidor - que é, naturalmente, um covarde - se refugia atrás das cordas, invocando descaradamente a ilegalidade, e é impiedosamente agarrado e recolocado no ringue, a multidão) delira ao ver a regra violada em proveito de um castigo merecido. Os lutadores sabem bem como incentivar o poder de indignação do público, propondo-lhe o limite máximo do conceito de justiça, zona extrema do confronto, em que, basta que se traiam um pouco mais as regras, para que se abram as portas de um mundo frenético. Para um amador de catch, não há nada mais belo do que o furor vingativo de um lutador traído que se lança com paixão, não sobre um adversário vitorioso, mas sobre a imagem flagrante da deslealdade. Naturalmente, é sobretudo o movimento da justiça que interessa, muito mais do que o seu conteúdo: o catch é, entes de mais nada, uma série quantitativa de compensações (olho por olho, dente por dente). Isto explica o fato das reviravoltas de situações comportarem uma espécie de beleza moral para os amadores: gozam-nas como um episódio romanesco bem-vindo, e quanto mais é acentuado o contraste entre o êxito de um golpe e a reviravolta do destino, tanto mais o sucesso de um lutador está próximo do seu declínio, e tanto mais o mimodrama é considerado satisfatório. A Justiça é portanto o corpo de uma transgressão; é por haver uma Lei que o espetáculo das paixões que à transgridem adquirem todo o seu valor.

Compreende-se assim, que, aproximadamente, em cada cinco combates de catch, um só seja "correto". Uma vez mais, é preciso que se entenda que a “correção" é aqui uma função ou um gênero, como no teatro: a regra não constitui absolutamente uma sujeição real, mas a aparência convencional da correção.

Assim, na realidade, um combate "correto" é "apenas um combate exageradamente cortês: os combatentes afrontam-se aplicadamente mas sem rancor, sabem controlar suas paixões, não se obstinam em liquidar o adversário, param assim que se lhes dá ordem de interromper o combate, e cumprimentam-se no fim de um lance particularmente violento, durante o qual, no entanto, permaneceram leais um ao outro. Deve-se naturalmente entender que todas essas cortesias são evidenciadas perante o público pelos sinais mais convencionais da lealdade: apertar a mão, erguer os braços, abandonar ostensivamente uma "figura" estéril que prejudicaria a perfeição do combate.

Inversamente, a deslealdade só transparece através de figuras excessivas: dar um pontapé no vencido, refugiar-se atrás das cordas invocando ostensivamente um direito puramente formal, recusar um aperto de mão do adversário antes e depois do combate, aproveitar a pausa oficial para o atacar à traição, pelas costas, dar-lhe um golpe proibido sem que o árbitro veja (golpe que evidentemente só tem valor e função porque, de fato, metade da sala pode vê-lo e indignar-se). Sendo o Mal o clima natural do catch, o combate "correto" tem sobretudo um valor de exceção; surpreende o freqüentador habitual que lhe presta homenagem (são corretos pra burro, esses aí); sente-se subitamente comovido com a bondade geral do mundo, mas sem dúvida morreria de tédio e de indiferença se os lutadores não regressassem rapidamente à orgia dos maus sentimentos, que são os únicos a produzir bom catch.

Levado ao extremo, o catch "correto" só poderia conduzir ao boxe ou ao judô, enquanto que o verdadeiro catch deve a originalidade a todos os excessos que fazem dele um espetáculo e não um esporte. O fim de uma luta de boxe ou de um encontro de judô é seco, como o ponto que conclui uma demonstração. O ritmo do catch é totalmente diferente, pois o seu significado natural é o de uma ampliação retórica: a ênfase das paixões, o renovar dos paroxismos, a exacerbação das réplicas, só podem levar à mais barroca das confusões. Certos combates, entre os melhores, são coroados por uma algazarra final, uma espécie de "fantasia" desenfreada em que são abolidos os regulamentos, as leis do gênero, a censura do árbitro e os limites do ringue, arrastados numa desordem triunfante que se espalha pela sala e mistura indiscriminada ente os lutadores, os massagistas, o árbitro e os espectadores.

Já notamos que na América, o catch representa uma espécie de combate mitológico entre o Bem e o Mal (de natureza parapolítica, sendo o mau lutador sempre considerado como um Vermelho). O catch francês corresponde a uma mitificação totalmente diferente, de ordem ética e não política. O que o público procura aqui é a construção progressiva de uma imagem eminentemente moral: a do "salaud" perfeito. Vai-se ao catch para assistir às aventuras renovadas de um personagem principal, único, permanente e multiforme como Guígnol ou Scapin, criador inventivo de figuras inesperadas, e, no entanto, sempre fiel à sua função. O "salaud" revela-se como um "tipo" de Molière, ou um retrato de La Bruyère, isto é, como uma entidade clássica, como urna essência, cujos atos não são mais do que epifenômenos significativos dispostos no tempo. Este caráter estilizado não pertence a nenhuma nação nem a nenhum partido, e quer o lutador se chame Kuzchenko (que recebeu o apelido de Bigode por causa de Stalin), Yerpazian, Gaspardi, jo Vignola ou Nollières, o freqüentador habitual supõe-lhe apenas uma pátria: a "correção".

Em que consiste um "salaud" para esse público, ao que parece, composto em parte por "marginais"? Trata-se, essencialmente, de um instável, que só admite as regras quando estas lhe são úteis, e transgride a continuidade formal das atitudes. É um homem imprevisível, logo, associal. Refugia-se na Lei quando pensa que esta lhe é propícia, e a trai quando lhe convém; tão depressa nega o limite formal do ringue e continua a bater no adversário protegido legalmente pelas cordas, como restabelece esse limite e reclama a proteção do que, instantes antes, não respeitava. É esta inconseqüência, mais do que a traição ou a crueldade, que põe o público fora de si: melindrado na sua lógica e não na sua moral, considera a contradição de argumentos a mais ignóbil das faltas. Um golpe interdito só deixa de ser correto se destrói um equilíbrio quantitativo e perturba o jogo rigoroso das compensações; o que o público condena não é de modo algum a transgressão de pálidas regras oficiais, é a tibieza da vingança e da penalidade. Assim, nada excita mais a multidão do que o pontapé enfático dado a um "salaud" vencido; a alegria de castigar atinge o auge quando se apóia sobre uma justificação matemática; o público solta então as rédeas ao seu desprezo: já não se trata de um "salaud" mas de uma "salope", gesto oral da última das degradações.

Uma finalidade assim precisa exige que o catch seja exatamente o que o público espera dele. Os lutadores, homens de grande experiência, sabem perfeitamente infletir os episódios espontâneos do combate no sentido da imagem que o público criou, para si próprio, dos grandes temas maravilhosos de sua mitologia. Um lutador pode irritar ou repugnar, mas nunca decepciona, visto que executa sempre até o fim o que o público espera dele, através de uma solidificação progressiva dos signos. No catch tudo o que existe, existe totalmente, não há símbolos nem alusões, tudo é dado exaustivamente; não deixando nada na sombra, o gesto elimina os significados parasitas e apresenta ritualmente ao público uma significação pura e plena, esférica, tal como uma Natureza. Esta ênfase nada mais é do que a imagem popular e ancestral da inteligibilidade perfeita do real. O que é mimado pelo catch é, portanto, uma inteligência ideal das coisas, é uma euforia dos homens, preservados durante um certo lapso de tempo da ambigüidade constitutiva das situações cotidianas, e instalados na visão panorâmica de uma Natureza unívoca, onde os signos corresponderiam enfim às causas, sem obstáculo, sem fuga e sem contradição.

Quando o herói ou o vilão do drama, o homem que há minutos se vira possuído de um furor moral, desenvolvido até à dimensão de uma espécie de signo metafísico, sai da sala de catch, impassível, anônimo, levando na mão uma pequena mala e de braço dado com a mulher, ninguém pode duvidar de que o catch contém o poder de transmutação que é próprio do Espetáculo e do Culto. No ringue, e no mais profundo da sua ignomínia voluntária, os lutadores são deuses, porque são durante alguns instantes a chave que abre a Natureza, o gesto puro que separa o Bem do Mal e desvenda a figura de uma justiça enfim inteligível.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Seminário de Inverno da ALI, Janeiro de 2012 em Paris

 

Qu'est-ce que ça serait pour vous une fin d'analyse ?

  • Étude du texte de Freud, Analyse finie ou infinie et du texte de Lacan, La Troisième
  • Organisateur(s) : Association Lacanienne Internationale
  • Du samedi 28 janvier 2012 au dimanche 29 janvier 2012
  • Lieu de déroulement : Paris Espace Reuilly, 21 rue Hénard - 75012 (France)

domingo, 25 de setembro de 2011

V CONGRESSO INTERNACIONAL DE CONVERGENCIA (texto da APPOA)

O ATO PSICANALÍTICO E SUAS INCIDÊNCIAS CLÍNICAS, POLÍTICAS E SOCIAIS




Coleção Carretéis – Iberê Camargo (1975)
22, 23 e 24 de junho de 2012
Porto Alegre/RS - Brasil

      A Psicanálise é uma prática discursiva cujos efeitos podem ser observados na clínica e também na vida cotidiana há mais de um século. Suas posições inovadoras, mesmo subversivas, sempre foram objeto de discussão dentro e fora das instituições psicanalíticas. As incidências do trabalho com o inconsciente mostram que a escuta do sintoma é possível considerando que este é sinal do sujeito e não manifestação de doença. Ora, nestes tempos de exigência de gozo imediato e de discursos fundamentalistas, face ao inevitável mal-estar na cultura, um tratamento que não ofereça cura milagrosa ou co nsolo permanente coloca-se como referência ética de que os atos de palavra são transformadores.  As associações e os psicanalistas reunidos em Convergencia – movimento lacaniano para a psicanálise freudiana  consideram que as articulações entre o sujeito e sua polis são indissociáveis; pois o psicanalista é permeável aos discursos e, para que a psicanálise possa avançar em sua prática e teoria, faz-se necessário um exame permanente das consequências de seus atos.
   No V Congresso Internacional de Convergencia que acontece em Porto Alegre, teremos oportunidade de renovar esta aposta. Um momento de encontro e debate sobre os efeitos do ato psicanalítico na clínica das neuroses, das psicoses e das perversões. Acontecimento onde os psicanalistas podem dar conta da sustentação de seu ato nos mais diversos âmbitos – consultórios, ambulatórios, hospitais e outros cujo lugar de reunião é uma oportunidade para compartilhar a experiência. Além disto, temos espaço para verificar os efeitos do ato no social, a experiência do encontro do discurso psicanalítico com as políticas públicas, sejam elas educacionais, culturais, ou de saúde mental.
    Um significante lançado ao mundo não é mais individual, afirmava Jacques Lacan em diversos momentos ao retomar o legado de Freud. Cada analista tem responsabilidade com a psicanálise ao sustentar em sua escuta os desdobramentos do fantasma na atualidade. Ao mesmo tempo, interrogar a política dos enlaces no campo psicanalítico faz parte de sua formação. Além disto, a transmissão do discurso psicanalítico está aberta às incidências do ato criativo, fazendo eco à potencia do discurso em seu esburacamento do real.
     Convidamos a participar deste evento, no qual psicanalistas de diferentes línguas, formações e transferências estão dispostos ao diálogo e a relançar o ato inaugural que nos faz sustentar o que é a psicanálise.
  
Eixos de trabalho
• As formas do tratamento psicanalítico na atualidade – o ato analítico. (Incidências Clínicas)
• A intervenção clínica da psicanálise nas políticas públicas; a política das instituições psicanalíticas; a política do desejo in-mundo. (Incidências Políticas)
• Como formular o mal-estar na cultura hoje?  O ato analítico frente ao mal-estar contemporâneo. O laço social frente ao individualismo, gozo e sofrimento. (Incidências Sociais)
• O ato e a criação do novo na cultura.
Instituições convocantes:
Apertura (Espanha)
Après-Coup Psychoanalytic Association (EUA)
Acte Psychanalytique (Bélgica)
Analyse Freudienne (França)
Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Brasil)
Círculo Psicoanalítico Freudiano (Argentina)
Cartels Constituants de L'Analyse Freudienne (França)
Centre Psychanalytique de Chengdu (China)
Colégio de Psicanálise de Bahia (Brasil)
Corpo Freudiano do Rio de Janeiro Escola de Psicanálise (Brasil)
Dimensions de la Psychanalyse (França)
Escola Lacaniana de Psicanálise do Rio de Janeiro (Brasil)
Escuela Freud-Lacan de La Plata (Argentina)
Escuela de Psicoanálisis Lacaniano (Argentina)
Escuela de Psicoanálisis de Tucumán (Argentina)
Escuela de Psicoanálisis Sigmund Freud-Rosario (Argentina)
Escuela Freudiana de Buenos Aires (Argentina)
Escuela Freudiana de la Argentina (Argentina)
Escuela Freudiana de Montevideo (Uruguai)
Escuela Freudiana del Ecuador (Equador)
Espace Analytique(França)
Espaço Psicanálise (Brasil)
Fédération Européenne de Psychanalyse et École Psychanalytique de Strasbourg (França)
Grupo de Psicoanálisis de Tucumán (Argentina)
Insistance (França)
Intersecção Psicanalítica do Brasil (Brasil)
Laço Analítico Escola de Psicanálise (Brasil)
Lazos Institución Psicoanalítica (Argentina)
Le Cercle Freudien (França)
Letra, Institución Psicoanalítica (Argentina)
Maiêutica Florianópolis (Brasil)
Mayeutica-Institución Psicoanalítica (Argentina)
Nodi Freudiani Associazione Psicanalítica (Itália)
Praxis Lacaniana Formação em Escola (Brasil)
Psychanalyse Actuelle (França)
REAL 50; Red Analítica Lacaniana (México)
$eminario Psicoanalítico (Argentina)
Trieb Institución Psicoanalítica (Argentina)
Triempo Institución Psicoanalítica (Argentina).
  
Realização: Convergencia – Movimento Lacaniano para a Psicanálise Freudiana

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

A Língua: Lacan, Guimarães Rosa e Caetano



"a língua  e eu somos um casal de amantes que juntos procriam apaixonadamente, mas a quem até hoje foi negada a bênção eclesiástica e científica." (Guimarães Rosa, citação em "Primeiras estórias", 2005, p. 8)
  
Criada num lapso por Lacan ( no Seminário "O saber do psicanalista"), a Lalangue é o meio pelo qual a linguagem intervém. A Língua é a "amante" de um certo João, conhecido como Guimarães Rosa, que o fez seguir na prosa da literatura como se fizesse poesia. Há Língua definitivamente nas canções do criativo e irreverente Caetano Veloso. Não só quando na "Língua" ela assume o lugar de mátria, mas em tantas outras palavras onde se pode ver o amor pelo literal (litoral), onde nada se escreve fora da palavra, na margem da palavra a não ser o silêncio de um puro Real da música e da voz do cantor. 

Disso ecoam algumas frases do psicanalista Lacan tão conectadas a essa poesia da música e da literatura, da arte, enfim. 
"Eu trabalho no impossível de dizer. Dizer é outra coisa que falar. O analisante fala. Ele faz  poesia. Ele faz poesia quando ele aqui chega, é pouco frequente, mas ele é arte (Il est art). Eu corto porque eu não quero dizer é tarde (Il est tard). O analista, ele, fatia (tranche). O que ele diz é corte, isto é, participa da escrita, exceto que ele se equivoque acerca da ortografia.” (Lacan, J. Le moment de conclure, 20/12/1977, inédito In Porge, E. Des Fondements de la Clinique psychanalytique, p. 40)  
"O dizer fica esquecido por  trás do dito" (Lacan, O Aturdito, [1972]2003, p. 449). Esquecido não no sentido de reclacado, mas de ex-sistente (existente fora/antes). O esquecido aqui, como frisa Lacan nesse mesmo texto, não está relacionado à memória, mas à existência. Esse dizer como o qual o analista trabalha é também a lavra do escritor. É o pai da palavra, tão bem conhecido por Guimarães Rosa, e encarnado na figura do pai que parte em silêncio em sua canoa, num dos textos mais valiosos da literatura brasileira, "A Terceira Margem do Rio".
O pai que parte e nunca volta é esse silêncio rio a fora, que faz o filho falar, escrever o texto. Esse dizer, concretizado no  duro-puro (aqui faço referência a Caetano[1]) silêncio paterno, é a ex-sistência das palavras do filho. O antes de qualquer significante.   Isso que nos toca antes da palavra e que  só depois quando ela chega se pode dizer tocado.
E, no que me toca, a Língua é coisa séria... Mais uma vez Lacan (Ou pire...[1971-1972]2008, p. 71), na aula em que apresenta o Nó Borromeano:
"O que me toca é que durante séculos, quando se tocava na língua, se falava para tomar cuidado! Há uma letra que só aparece geralmente à margem na composição fonética, é essa aqui [H], que se pronuncia hache em francês. Não toque no machado[2], é isso que era prudente durante os séculos quando se tocava na língua. Porque se achou que durante os séculos, quando se tocava na língua, em público, isso fazia efeito, um efeito diferente da diversão..."
O divertimento sério que nos propõe Lacan nessa aula e no seu ensino, eu ousaria dizer que é bem parecido com a brincadeira do moleque Caetano Veloso e com a paixão do tri-marginal João Guimarães Rosa! 
Sempre na margem da palavra...
Patrícia Pinheiro  





[1] “A terceira margem do rio” (música de Milton Nascimento e letra de Caetano Veloso)
[2] A palavra hache em francês significa machado; é homógrafa ao nome da letra H, hache. (Nota da tradutora)


domingo, 7 de agosto de 2011

NÚCLEO DE ESTUDOS DAS PSICOSES

* 1. Por que criar um Núcleo de estudos das psicoses?
Porque acredito que sabemos muito pouco sobre a loucura e suas manifestações...
Quando eu ainda era uma estudante do 3º ano do segundo grau, hoje ensino médio, houve um ciclo de palestras no meu colégio para auxiliar na escolha da profissão. O palestrante que mais me marcou foi o psiquiatra Alaor Coutinho. Não consigo esquecer sua maneira entusiasta ao falar sobre o louco e a loucura. Porque precisei fazer outras escolhas antes de me render ao desejo de escutar a psicose, é outra história... Mas o fato é que ao me tornar psicanalista isso me pegou!   
O “núcleo” - Núcleo de estudos das psicoses - é a com-formação desse desejo calado que pode encontrar espaço na TRICICLO, na minha formação como analista e nos meus estudos insistentemente endereçados à Universidade.
Voilá! Eis-me aqui, de forma apaixonada, convocando os interessados na temática para boas conversas, presenciais ou on-line, a partir de setembro próximo.
A agenda sairá em breve!
Patrícia Pinheiro

sábado, 6 de agosto de 2011

ALVARÁ DE FUNCIONAMENTO DEFINITIVO

Comunicamos aos nossos pacientes, seguidores e colegas que a TRICICLO,  funcionando com alvará provisório desde sua abertura em março deste ano, segue em seus trabalhos com alvará definitivo a partir do mês de agosto!


NOVO HORÁRIO_GRUPO DE ESTUDOS

"LACAN FUNDAMENTAL - A Carta Roubada", QUE COMEÇARÁ NA PRÓXIMA SEMANA (16.08), FUNCIONARÁ NA SEDE DA TRICICLO ÀS TERÇAS-FEIRAS DAS 18:30H ÀS 20H.
Para inscrição envie e-mail para: clintriciclo@uol.com.br

quinta-feira, 14 de julho de 2011

PROGRAMAÇÃO 2011.2 - GRUPO DE ESTUDOS

"LACAN FUNDAMENTAL"
Coordenação: Patrícia Pinheiro
HORÁRIO: QUINTAS-FEIRAS, DAS 19H ÀS 20:3OH
FREQUÊNCIA SEMANAL
VALOR: R$ 100,00
LOCAL: TRICICLO - Sgan 607, Ed. Brasília Medical Center, Cj. A, Bl. B, sls 104 e 105.
Inscrição pelo e-mail: clintriciclo@uol.com.br
INÍCIO: 18.08.2011

LEITURAS: "A carta roubada" (Edgar A. Poe) e "A carta roubada" (Lacan, J. Escritos) 

terça-feira, 5 de julho de 2011

XII Encontro Nacional da EPFCL/AFCL – Brasil

Cartilha da 1ª VIJ orienta crianças contra abuso sexual

A 1ª Vara da Infância e da Juventude (1ª VIJ) acaba de tornar disponível na internet uma cartilha de prevenção à violência sexual destinada a crianças e adolescentes. Ilustrado e com linguagem apropriada ao público infantojuvenil, o folheto tem como objetivos esclarecer e informar a criança quanto ao seu direito à integridade física e emocional e legitimar o seu direito de pedir ajuda quando necessário.

Com o título "Um Presente Especial", a cartilha é utilizada desde 2007 pela 1ª VIJ no trabalho de prevenção primária do abuso sexual contra crianças e adolescentes. Este ano foi impressa a 2ª edição do folheto, cuja redação foi elaborada pela psicóloga Viviane Amaral dos Santos, supervisora do Centro de Referência para Violência Sexual da 1ª VIJ, com a colaboração de sua equipe e da Seção de Atendimento à Situação de Risco da Vara.

Além dessa publicação especialmente produzida para o público infantil, foi lançada no ano passado, como parte da Coleção Conhecendo a 1ª VIJ/DF, a cartilha "Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes", voltada à orientação dos pais ou responsáveis, bem como dos profissionais da rede de proteção e atendimento à infância e juventude. Todas as cartilhas estão disponíveis no site do TJDFT, link Infância e Juventude, Publicações.

 
A cartilha está disponível no link

terça-feira, 26 de abril de 2011

O ÉDIPO COMO COMPLEXO


Édipo resolve o problema enigma da esfinge (1808), Ingres


O pai assume um lugar central na psicanálise de Freud, o que é representado por dois mitos em destaque na sua obra. O primeiro deles refere-se à tragédia de Sófocles, Édipo Rei, a história da família maldita dos Labdácidas; e o segundo refere-se ao mito da refeição do pai totêmico.
Eis, em primeira análise, o mito e a tragédia de Édipo. Na seqüência algumas considerações a respeito de Totem e Tabu (Freud, 1912-1913/1976).
Veja-se, a priori , uma das versões de Édipo Rei[1].
Advertido pelo oráculo de que não devia gerar descendência e de que caso desobedecesse teria um filho que o mataria e dormiria com a mãe, Laio manteve com Jocasta relações sodomitas (ou, em algumas versões, Laio se abstém de qualquer relação com Jocasta). “Rei de Tebas de belos cabelos, lhe dissera o deus, evita inseminar, a despeito dos deuses, o sulco feminino. Se procriares um filho, essa criança te matará e tua casa inteira mergulhará no sangue.” Mas uma noite, incapaz de resistir, penetrou sua esposa do “lado bom” e lhe plantou um filho nos flancos. Ao nascer, este foi condenado a ser exposto no monte Citeron para ali morrer. O pastor a quem foi confiado, e que devia realizar essa tarefa, lhe passou uma corda em torno do tornozelo a fim de suspendê-lo. (Em algumas versões é o próprio Laio que fura os pés do infans.) Porém, em lugar de abandoná-lo, confio-o a um criado de Pólibo, rei de Corinto, cuja mulher, Merope, era estéril. Apelidado Édipo em razão de seu pé inchado, o filho de Laio foi educado como um príncipe por aqueles a quem tomava como pais, que lhe haviam feito o herdeiro do reino. Em seu corpo conservava sem saber a marca da dinastia claudicante dos Labdácidas. Na idade adulta, confrontando um dia com o rumor de sua origem duvidosa, decidiu se dirigir a Delfos para consultar o oráculo, o qual repetiu sua predição. Édipo quis, então, afastar de si a maldição. Não voltou a Corinto, dirigindo-se para Tebas no exato momento em que esta cidade era atingida por múltiplos flagelos. Na encruzilhada dos três caminhos, encontrou-se com Laio e sua comitiva, eles se dirigiam a Delfos a fim de interrogar o oráculo sobre o desastre que se abatia sobre seu reino. Como a passagem era demasiado estreita para ser atravessada pelos dois viajantes, houve uma discussão. Édipo matou Laio e prosseguiu seu caminho rumo a Tebas, enquanto um sobrevivente da comitiva deste último anunciava  na cidade a notícia da morte do rei, Creonte, irmão de Jocasta, originário da linhagem de Cadmo, subiu então ao trono. Condenado a não reinar senão de forma oblíqua, ao cabo de uma série de anomalias, e sem nunca conseguir transmitir o poder à sua descendência, também ele era marcado por um destino claudicante. Rei efêmero, ofereceu publicamente o leito da rainha àquele que resolvesse o enigma da “virgem sutil” (a Esfinge, como é chamada por Eurípides).
Meio-homem, meio-animal, ao mesmo tempo macho e fêmea, a Esfinge (ou o Esfinge) guardava a entrada da cidade ao mesmo tempo em que entoava profecias. Assim que avistava um viajante, propunha-lhe resolver um enigma que era próprio da condição humana, e portanto da condição trágica de Édipo, o herói, já assassino de seu pai sem saber: “Existe sobre a terra um ser com dois, três e quatro pés, cuja voz é única. Só ele muda sua natureza entre aqueles que se movem sobre o solo, no ar e no mar. Mas é se apoiando, sobre mais pés que seus membros possuem menos vigor.”
“É o homem que tu falas, responde Édipo; pequenino, quando se arrasta pelo chão ao sair do seio da mãe, tem primeiro quatro pés. Já velho, apóia-se sobre um bastão, terceiro pé, dorso curvado sob o fardo da idade.”
Aniquilada pelo poder de  Édipo, a Esfinge desapareceu nas trevas e Tebas pôde renascer. Creonte abandonou o trono e deu Jocasta em casamento ao herói, que não desejava nem amava a rainha, mas se viu obrigado a esposá-la como um presente, como uma recompensa oferecida por uma cidade libertada, graças a ele, do flagelo da profetisa: “Esfinge e rainha, escreve Jean Bollack, simbolizam a cidade, uma em sua ruptura, outra em sua plenitude”. Com Jocasta, Édipo restaura a unidade de Tebas. Sem o saber, cometeu o incesto após o parricídio de pois substituiu Laio no ato de geração e de procriação. (Roudinesco, 2002/2003, p.p. 51-53)
A história se desenvolve até esse ponto: Édipo atinge a glória como Rei e tem quatro filhos com Jocasta (Etéocle, Polinice, Antígona e Ismene). A peste, então, se abate sobre Tebas ao que o oráculo de Delfos, diz a Creonte, ser conseqüência da morte de Laio. O próprio Édipo, em busca do assassino de Laio, descobre toda trama, cegando-se antes de se tornar um mendigo, conforme prevera o sábio Tirésias.
Freud foi decisivamente influenciado por essa tragédia, assim como, em menor proporção, pelo Hamlet de Shakespeare e pelos irmãos Karamazov, de Dostoïeveski, para tentar compreender o que em princípio chamou de complexo nuclear das neuroses, a partir das análises das histéricas. No rascunho N da Carta 64, a Fliess, Freud (1897/1976) narra um sonho que teve com sua filha, a partir do qual pode detectar o pai como produtor das neuroses. Na Carta 69, da mesma correspondência, Freud propõe uma reformulação significativa na sua obra, que é a passagem da teoria da sedução (trauma) para a teoria das fantasias, mudança essa eivada de sua visão sobre um complexo parental. Mas, é na carta 71 que Freud faz uma referência expressa ao mito de Édipo e revela a Fliess o seguinte: Muito fácil não é. Ser completamente sincero consigo mesmo é um bom exercício. Um único pensamento de validade universal me tem sido dado. Também em mim tenho achado o desejo pela mãe e o ciúme pelo pai e agora considero isso um sucesso universal da infância. Desde então o Édipo assume seu caráter universal para a psicanálise freudiana, o que é motivo de crítica, sobretudo entre antropólogos, historiadores e sociólogos.     
O termo Complexo de Édipo só é assim designado num texto de 1910: “Sobre um tipo especial de escolha de objeto no homem” e é referido especificamente em 1924, em “A dissolução do Complexo de Édipo”.
O Édipo como Complexo é designado como o conjunto organizado de desejos amorosos e hostis que a criança sente em relação aos pais. Sob a forma dita positiva, o complexo apresenta-se como na história de Édipo-Rei: desejo da morte do rival que é a personagem do mesmo sexo e desejo sexual pela personagem do sexo oposto. Sob a sua forma negativa, apresenta-se de modo inverso: amor pelo progenitor do mesmo sexo e ódio ciumento ao progenitor do sexo oposto. Na realidade, essas duas formas encontram-se em graus diversos na chamada forma completa do  complexo de Édipo. (Laplanche e Pontalis, 1998, p. 77)
O apogeu do complexo de Édipo está situado entre os três e cinco anos, na chamada fase fálica[2]. A dissolução, marca a entrada do indivíduo no período de latência[3], o que corresponde à incidência do recalque sobre o material da infância, provocando a amnésia infantil. Essa fase marca também a predominância do complexo de castração.
A castração como complexo é um conceito co-extensivo da noção de Édipo. Freud (1905/1976) o estudou de forma sistemática na análise que fez da fobia de cavalos de um menino de 5 anos, o Caso Hans, no qual pode estabelecer relações da castração com a vivência edípica da proibição do incesto, da interdição da mãe pelo pai.
O complexo de castração é dissimétrico entre meninos e meninas (Lacan, 1956-1957/1995)[4]. No menino a saída do  complexo de Édipo ocorre pelo horror à castração. Esse supõe que pelo seu desejo, endereçado à mãe, vão lhe cortar o pênis, sendo o pai o agente castrador. Enquanto que para a menina é pela inveja do pênis, pelo horror à castração da mãe e do seu próprio sexo que ela entra no Édipo.
O complexo de castração é construído por Freud (1924/1976) através da primazia do falo que é uma premissa básica da teoria sexual infantil, é essa noção que dará sentido à diferença anatômica entre os sexos e à futura organização do destino dos sujeitos em posições sexuadas femininas e masculinas.
A castração enquanto Lei que interdita a mãe ao filho, operação feita pelo pai enquanto função tem um grande foco da teoria de Jacques Lacan. Essa noção de Lei da castração adveio de Totem e Tabu (Freud, 1912-1913/1976), que novamente coloca o pai no centro da problemática do sujeito.
A seguir há um resumo e considerações sobre esse texto freudiano.


[1] Roudinesco, E. (2003) A família em desordem. Trad. André Telles, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. (Trabalho original publicado em 2002) 
[2] As fases do desenvolvimento psicossexual são designadas por Freud não como estágios estanques, cronologicamente, e evolutivos, mas de investimento pulsional. São elas: fase oral, fase anal-sádica, fase fálica e fase genital.   
[3] O período ou tempo de latência é um momento que vai do declínio da sexualidade infantil (entre 5 e 6anos) até o início da puberdade, e que marca uma pausa na evolução da sexualidade. (Laplanche e Pontalis, 1998, p. 263)   
[4] LACAN, J. (1995) O seminário, livro 4: a relação de objeto. Tradução de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., (Trabalho original de 1956- 1957).

por Patrícia Pinheiro , 27/04/2007


O Nome-do-Pai em TOTEM E TABU

Freud, S (1996). Totem e tabu. Em: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de janeiro: Imago, vol XIII (Trabalho original publicado em 1913[1912])

EM NOME DO PAI
O totem nada mais é que o representante do pai ( p. 176)

O sacrifício de Isaac por Marc Chagall, 1966

O sistema totêmico dos aborígines australianos é a referência utilizada por Freud para estabelecer uma relação entre a psicologia dos neuróticos e a psicologia dos povos primitivos. O totem normalmente é um animal inofensivo e comestível que mantém uma relação peculiar com todo o clã totêmico (p.21). Esse animal representa o clã, que o venera, resgardando-o da morte e homenageando-o em festas tribais, nas quais muitos se vestem tal e qual esse símbolo totêmico. Há entre os membros do clã uma forte ligação que os unem em detrimento dos laços sanguíneos. É assim que se observa o horror ao incesto, expresso pela exogamia totêmica, que é a proibição relativa aos membros do clã de manterem relações sexuais entre si. Eis as duas leis básicas do totemismo, ou seja, seus dois tabus são: não matar o animal totêmico e evitar relações sexuais com membros do clã totêmico do sexo oposto, ao que Freud enuncia como os mais antigos e poderosos dos desejos humanos (p. 52). Quanto aos desejos incestuosos, Freud os indica como uma característica infantil, representada no complexo nuclear das neuroses, o que mais adiante no texto, ao falar do Caso Hans, e ao longo de sua obra, ele vai denominar de Complexo de Édipo.  Ainda neste texto Freud denomina de complexo-pai uma ambivalência muito grande em relação ao primeiro tabu, qual seja a que se relaciona à refeição totêmica e às suas origens. É que na horda primitiva, descrita por Darwin, o animal totêmico a quem era proibido matar, em algumas celebrações era traçado numa refeição totêmica de incorporação, cujo desfecho é um ritual de luto, lamentação e pranto pelo animal morto. Mas de onde viria essa expiação e culpa por devorar, em uma cerimônia tribal, o animal totêmico?
Para além do totem: a função do nome próprio[1]
A partir da análise do sistema totêmico, particularmente dos estudos de William Robertson Smith[2], da reunião da interpretação psicanalítica do totem  com a refeição totêmica  e com as teorias darwinianas do estado primitivo da sociedade humana, Freud propôs uma hipótese fantástica  das origens da celebração da refeição totêmica. Eis: o assassinato do pai violento e ciumento da horda primitiva, que possuía todas as mulheres, expulsando os filhos à medida que cresciam. O pai primevo era temido e invejado por esses filhos, que retornam juntos à horda, de onde foram expulsos, com o objetivo de assassinar o pai e devorá-lo, num banquete totêmico. A culpa pelo assassinato do pai amado e odiado leva ao arrependimento e a uma dívida para com o pai. O pai morto tornou-se mais forte do que fora vivo ( p. 171). O que até então era interditado pela existência real do pai passa a ser proibido pelos próprios filhos, a partir de um pacto entre eles. Com o mito da horda primitiva Freud lança luz acerca das neuroses ao estabelecer um elo entre Lei e desejo. A Lei vem coibir dois tabus, dois desejos cruciais para toda humanidade: assassinato do pai e incesto, sobretudo com a mãe. Essa Lei é referendada por Lacan (1957-1958/1999)[3] como o Nome-do-Pai ou função paterna.  Quando Freud anuncia o totem como representante do pai, ele estabelece aquilo que Lacan começa a definir como o pai enquanto função. Para assim o fazê-lo Lacan (1963/2005)[4] estabelece a noção do sujeito anterior à questão. Diz: miticamente – e é o que quer dizer mítica mente – o pai só pode ser um animal. O pai primordial é o pai anterior ao interdito do incesto, anterior ao surgimento da Lei, da ordem das estruturas da aliança e do parentesco, em suma, anterior ao surgimento da cultura. Eis porque Freud faz dele o chefe da horda, cuja satisfação, de acordo com o mito animal, é irrefreável (idem, p. 73).  Segundo Freud, o sistema totêmico foi, por assim dizer, um pacto com o pai, no qual este lhe prometia tudo o que uma imaginação infantil pode esperar de um pai – proteção, cuidado e indulgência – enquanto que, por seu lado, comprometiam-se lhe respeitar a vida, isto é, não repetir o ato que causara a destruição do pai real (p.173). Os membros do clã reforçam assim os laços de identidade entre eles. O pai é, portanto, a expressão de uma falta (o pai morto) e é esta falta que instaura a cultura, a moralidade e a religião. É por isso que Lacan (1957-1958/1999)[5] fala em Nome-do-Pai, um significante, um nome para um vazio, uma falta. O pai, assim, não tem nome próprio, é antes uma função de ligar, por exemplo, significante e significado, Lei e desejo[6]. O Nome-do-Pai barra o acesso ao gozo absoluto e institui uma lei: a lei da interdição do incesto. A dívida para com o pai será, então, honrada mediante o culto rendido à instituição simbólica da proibição do incesto e será transmitida de geração em geração. Ou seja, o que deverá ser transmitido é a lei do desejo, da interdição do incesto e da castração, o que para os sujeitos neuróticos se faz através da trajetória edípica, que lhes possibilita encontrar seu lugar na partilha dos sexos e na ordem geracional. Freud questiona: quais são as maneiras e meios empregados por determinada geração para transmitir seus estados mentais à geração seguinte? ( p.187), para em seguida citar Goethe: Aquilo que herdaste de teus pais conquista-o para fazê-lo teu ( p. 188). Mas não só em Totem e Tabu, como em toda extensão da obra freudiana, as versões do pai indicam que sua função está sempre ligada à noção de lei e à transmissão dessa lei para as gerações vindouras.


[1] Lacan, J. (2005) Nomes-do-Pai. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., (trabalho original de 1953 e 1963)  
[2] Físico e filósofo, crítico da Bíblia e arqueólogo, falecido em 1894  (Freud,1913/1976, p. 160).
[3] Lacan, J. (1999) O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. (trabalho original de 1957/1958).
[4] Lacan, J. (2005) Nomes-do-Pai. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., (trabalho original de 1953 e 1963)  

[5] Lacan, J. (1999) O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. (trabalho original de 1957/1958).
 
[6] O pai como função de acordo com Jacques-Alain Miller, 2005, na contra-capa de Lacan, J. (2005) Nomes-do-Pai. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., (trabalho original de 1953 e 1963)  


por Patrícia Pinheiro