quarta-feira, 1 de agosto de 2012

O ser (L'être) e a letra (La Lettre) na Linguisteria

Freud, 1898, um pouco antes de receber, Dora [Ida Bauer]
Seria por demais dizer que o advento da Psicanálise é tributário da literatura? Aposto que não. Para começar, é  na tragédia de Sofócles, "Édipo Rei", que Freud leitor encontra respaldo para a escrita do sintoma neurótico. É a trama do complexo de Édipo que constrói o enredo sintomático das histéricas do fim do século XIX, começo do século XX.
Mas para além da história há algo na narrativa que se localiza na letra, isso que conferiu a Freud a possibilidade de pensar, em princípio, que suas pacientes "sofriam de reminiscências". Ou seja, que elas padeciam por se lembrar de algo que de fato havia lhes acontecido. À primeira vista é o literal que ganha corpo. Ora, é essa a essência do trauma que é tomado ao pé da letra, vivido literalmente. O Real é exatamente essa letra, que por sua vez escapa a toda possibilidade de simbolização.
Então, o sintoma nasceu letra, trauma, e assim Freud formulou sua primeira teoria nomeando-a de "Teoria da Sedução ou do Trauma", mas depois ao ouvir, por poucos meses, a jovem Dora e seus muitos sintomas conversivos, Freud re-viu sua teoria e passou a chamá-la de Teoria da Fantasia. A ideia freudiana passa ser: As histéricas faziam sintomas não porque haviam sofrido abusos ou coisas semelhantes, mas porque desejavam algo que lhes era interditado. Assim, o desejo torna-se o centro do sintoma e este assume um lugar simbólico, para além da letra viva. Aqui se pode fazer um contraponto entre o Real, como trauma, letra viva e o Simbólico, como desejo, letra morta; no sentido de que, uma vez acontecido, o evento retratado passa a ser sempre atravessado pelo desejo.       
Teria então o sintoma deixado de ser considerado como letra viva, o Real, como quer Lacan, e seria instituído como simbólico, como uma metáfora? Sempre indicando que o desejo "escreve certo por linhas tortas"?        
Lembra Chnaiderman¹ (1998) que Lacan² ([1972-1973]) afirma, numa homenagem a Jakobson, que seu dizer sobre o fato do inconsciente ser estruturado como uma linguagem, não é do campo da linguística. Apresentando a lingüisteria, instaurando um domínio de trabalho com o desejo. Lacan assim situa a histeria no nível da linguagem. Ora, é o desejo que faz deslizar os significantes na cadeia.
Com isso, o ser (l’être) da psicanálise é um ser da linguagem. 
"L'être que j'ai appelé humain est essentiellement un être parlant" [O ser que eu chamei humano é essencialmente um ser falante. ] Lacan, J³., 1975.

por Patrícia Pinheiro

  1. CHNAIDERMAN, M. (1998) Narrativa e imagem: movimentos do desejo. Conferência proferida em Paris, no dia 19 de fevereiro de 1988, a convite da Association Freudienne de Paris e a 11 de maio de 1988, no Instituto Sedes Sapientiae, a convite do Departamento de Psicanálise. http://www2.uol.com.br/percurso/main/pcs01/artigo0125.htm.
  2. LACAN, J. (1972-1973) O Seminário, livro 20. Mais, Ainda. Lição 2.
  3. LACAN, J. (1975)  Conférence à Genève sur le symptôme.

Escrever a Psicossomática: o grito e o hieróglifo

hierógligos egipícios

O grito, Auguste Rodin

O que é o corpo na psicossomática? A experssão do grito que o trauma evoca ou a marca de algo cifrado como um hieróglifo? Lacan¹ (1975) diz que a doença psicossomática se assemelha muito mais a um hieróglifo do que a um grito. Porque na psicossomática trata-se da escrita. Ainda que o grito seja muito difícil de traduzir, ele é outra coisa que não a escrita. O hieróglifo, seja egipicio ou chinês, como afirma Lacan, sempre se trata da configuração do traço. 
Na psicossomática  a escrita é das cifras porque não se quer falar dos números. O que isso quer dizer?
Essa cifra  é o traço, que é Um, o  traço unário (Einziger Zug). O corpo se deixa escrever por alguma coisa da ordem do número, como nos ensina Lacan (idem). 
Seria a literatura da psicossomática uma espécie de série matemática?  
O que quero pensar é como acontece essa escrita literal no corpo...    

por Patrícia Pinheiro
1. LACAN, J. (1975). Conférence à Genève sur : " Le symptôme ".