quarta-feira, 1 de agosto de 2012

O ser (L'être) e a letra (La Lettre) na Linguisteria

Freud, 1898, um pouco antes de receber, Dora [Ida Bauer]
Seria por demais dizer que o advento da Psicanálise é tributário da literatura? Aposto que não. Para começar, é  na tragédia de Sofócles, "Édipo Rei", que Freud leitor encontra respaldo para a escrita do sintoma neurótico. É a trama do complexo de Édipo que constrói o enredo sintomático das histéricas do fim do século XIX, começo do século XX.
Mas para além da história há algo na narrativa que se localiza na letra, isso que conferiu a Freud a possibilidade de pensar, em princípio, que suas pacientes "sofriam de reminiscências". Ou seja, que elas padeciam por se lembrar de algo que de fato havia lhes acontecido. À primeira vista é o literal que ganha corpo. Ora, é essa a essência do trauma que é tomado ao pé da letra, vivido literalmente. O Real é exatamente essa letra, que por sua vez escapa a toda possibilidade de simbolização.
Então, o sintoma nasceu letra, trauma, e assim Freud formulou sua primeira teoria nomeando-a de "Teoria da Sedução ou do Trauma", mas depois ao ouvir, por poucos meses, a jovem Dora e seus muitos sintomas conversivos, Freud re-viu sua teoria e passou a chamá-la de Teoria da Fantasia. A ideia freudiana passa ser: As histéricas faziam sintomas não porque haviam sofrido abusos ou coisas semelhantes, mas porque desejavam algo que lhes era interditado. Assim, o desejo torna-se o centro do sintoma e este assume um lugar simbólico, para além da letra viva. Aqui se pode fazer um contraponto entre o Real, como trauma, letra viva e o Simbólico, como desejo, letra morta; no sentido de que, uma vez acontecido, o evento retratado passa a ser sempre atravessado pelo desejo.       
Teria então o sintoma deixado de ser considerado como letra viva, o Real, como quer Lacan, e seria instituído como simbólico, como uma metáfora? Sempre indicando que o desejo "escreve certo por linhas tortas"?        
Lembra Chnaiderman¹ (1998) que Lacan² ([1972-1973]) afirma, numa homenagem a Jakobson, que seu dizer sobre o fato do inconsciente ser estruturado como uma linguagem, não é do campo da linguística. Apresentando a lingüisteria, instaurando um domínio de trabalho com o desejo. Lacan assim situa a histeria no nível da linguagem. Ora, é o desejo que faz deslizar os significantes na cadeia.
Com isso, o ser (l’être) da psicanálise é um ser da linguagem. 
"L'être que j'ai appelé humain est essentiellement un être parlant" [O ser que eu chamei humano é essencialmente um ser falante. ] Lacan, J³., 1975.

por Patrícia Pinheiro

  1. CHNAIDERMAN, M. (1998) Narrativa e imagem: movimentos do desejo. Conferência proferida em Paris, no dia 19 de fevereiro de 1988, a convite da Association Freudienne de Paris e a 11 de maio de 1988, no Instituto Sedes Sapientiae, a convite do Departamento de Psicanálise. http://www2.uol.com.br/percurso/main/pcs01/artigo0125.htm.
  2. LACAN, J. (1972-1973) O Seminário, livro 20. Mais, Ainda. Lição 2.
  3. LACAN, J. (1975)  Conférence à Genève sur le symptôme.

Escrever a Psicossomática: o grito e o hieróglifo

hierógligos egipícios

O grito, Auguste Rodin

O que é o corpo na psicossomática? A experssão do grito que o trauma evoca ou a marca de algo cifrado como um hieróglifo? Lacan¹ (1975) diz que a doença psicossomática se assemelha muito mais a um hieróglifo do que a um grito. Porque na psicossomática trata-se da escrita. Ainda que o grito seja muito difícil de traduzir, ele é outra coisa que não a escrita. O hieróglifo, seja egipicio ou chinês, como afirma Lacan, sempre se trata da configuração do traço. 
Na psicossomática  a escrita é das cifras porque não se quer falar dos números. O que isso quer dizer?
Essa cifra  é o traço, que é Um, o  traço unário (Einziger Zug). O corpo se deixa escrever por alguma coisa da ordem do número, como nos ensina Lacan (idem). 
Seria a literatura da psicossomática uma espécie de série matemática?  
O que quero pensar é como acontece essa escrita literal no corpo...    

por Patrícia Pinheiro
1. LACAN, J. (1975). Conférence à Genève sur : " Le symptôme ". 

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Querido Stephen,


A escrita de James Joyce lhe rendeu o título de inventor do romance moderno. Mas este criador foi um "deus" endiabrado, um tanto controverso,  apontado como ilegível, em princípio censurado em sua terra, inclusive por tipógrafos que se recusavam a imprimir seu texto, por considerá-lo devasso. O que faz Joyce, então, na literatura infantil?
Uma carta enviada, em 1936, a seu neto, Stephen Joyce, transformou-se no livro "O gato e o Diabo"¹, editado no Brasil  pela Cosac Naify.
Uma carta (une lettre), a letra de Joyce ou "sua arte" como diria Lacan²  , é sobre um certo diabo que fala uma língua inventada por ele mesmo, a" bellysbabble", além de "um monte de outras línguas" e que resolve fazer surgir uma "ponte" para que os habitantes da pequena cidade de Beaugency (na França) pudessem atravessar o Rio Loire. 
E o gato? Ah, tem que ler o livro para entender que diabos ele faz nessa história!!!
O que fará a criança leitora com esse texto? Imagine! As endiabradas então...
Em todo caso eu sei que não vão estabelecer essa ponte medonha que surgiu na minha cabeça, mas plim, aqui está ela:
O caso é que a "bellysbabble", o "monte de línguas" e a "ponte" me fazem pensar no Sinthoma e no "nó bo". Lacan² diz: "Joyce acaba por ter visado por sua arte, de maneira privilegiada o quarto termo chamado de sinthoma" (p.38). Essa ideia lacaniana é de que há algo na escrita de Joyce que se configura como uma sustentação para os três registros do inconsciente, amostrados no nó borromeano, a saber: o Real, o Simbólico e o Imaginário. O Sinthoma é o quarto elo que sustenta o Nó Borromeano. "Uma escrita é, portanto, um fazer que dá suporte ao pensamento" (Lacan², p.140). 
A escrita de Joyce se configura como sustentação porque, na concepção lacaniana, ela vai escrever esse nó, e assim sustentar a possibilidade de ver como ele funciona. Lacan chama o RSI de nó bo, se referindo a alguma coisa evocada em algum  lugar da  literatura joyceana: "Onde sobre o monte Nebo a Lei nos foi dada." (Lacan², citando Joyce, p. 140). 
O que seria a "ponte", em "O gato e o Diabo"? O sinthoma tal qual pensado por Lacan? Será que isso se sustenta?
E o "monte de línguas", a invenção da "bellysbabble": poderiam se conformar como o "nó bo"? 
Se assim for, as línguas se configuram nessa escrita do RSI e a ponte - o sinthoma, como aquilo que sustenta e comunica essa escrita. O sinthoma relaciona. Freud com a invenção da psicanálise, no mundo moderno, relacionou a linguagem ao sexo. Lacan afirma que Joyce é um a-Freud, jogando com as palavras, para não perder o costume - "affreux", medonho em francês. Esse "a" é o objeto pequeno a, que concerne a uma relação. 
Ora, em "O gato e o Diabo", Lelis, o ilustrador, dá a Joyce seu lugar demoníaco, medonho (eu diria), ou seja, aquilo que ele faz com sua escrita: uma relação.

por Patrícia Pinheiro


Bibliografia:
1. Joyce, James. O gato e o Diabo. {The cat and The Devil]. Tradução de Lygia Bojunga. Ilsutação de Lelis. São Paulo, Cosac Naify, 2012.
2. Lacan, Jacques. O Seminário, livro 23: o sinthoma, 1975-1976. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Sergio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.


quarta-feira, 25 de julho de 2012

Uma carta de Freud à Princesa Marie Bonaparte



Uma carta de Freud a Marie Bonaparte
Grinzing, 13 de agosto de 1937.

Minha cara Marie:¹

Posso responder-lhe sem demora, pois tenho pouco a fazer. O “Moisés” II foi concluído anteontem, e as pequenas dores esquecemos melhor numa troca de idéias com amigos.

Para o escritor, a imortalidade significa que ele será amado por muitas pessoas desconhecidas. Mas eu sei que não chorarei sua morte. Pois você sobreviverá a mim por muitos anos e, espero, se consolará rapidamente, e me deixará seguir vivendo em sua memória amiga, a única espécie de imortalidade limitada que reconheço.

No momento em que nos perguntamos sobre o valor e o sentido da vida, estamos doentes, pois objetivamente tais coisas não existem. Ao fazê-lo, apenas admitimos possuir um quê de libido insatisfeita, a que algo mais deve ter acontecido, uma espécie de fermentação que conduz à tristeza e à depressão. Essa minha explicação não é grande coisa, certamente. Talvez porque eu mesmo seja muito pessimista. Anda em minha cabeça um advertisement que considero o mais ousado e bem-sucedido exemplo de propaganda americana:

Why live, if you can be buried for ten dollars?

(Por que viver, se você pode ser enterrado por dez dólares?)

Lün² refugiou-se junto a mim, depois de um banho. Se a compreendo bem, manda que lhe agradeça a lembrança.

Topsy³ já sabe que está sendo traduzida?

Escreva breve!

Afetuosamente,

Freud

___________________
1 Marie Bonaparte (1882-1962), princesa da Grécia, foi paciente, depois discípula e amiga de Freud. (N. O.). Deve-se à essa mulher a preservação do acervo de Freud para posteridade. Foi ela quem impediu que Freud, sua família (mulher, filhos e netos),seus textos, objetos etc. fossem salvos da exterminação nazista. Assim, por sua mão, Freud chegou em Londres em junho de 1938.
2 Lün era uma cadela de Freud, da raça chow.
3.Topsy, também uma cadela chow, pertencia a Marie Bonaparte; a última frase se refere ao trabalho que Marie Bonaparte escreveu sobre ela, que estava sendo traduzido por Freud e a filha Anna. (N. O.)

quinta-feira, 5 de abril de 2012

O CHEFE DE TREM - Livro Infantil de Patrícia Pinheiro


Pela Editora Triciclo, em setembro de 2012, será lançado o primeiro livro infantil da psicanalista Patrícia Pinheiro.
"O Chefe de Trem", que foi escrito em 1999, é uma homenagem ao pai da escritora.
De uma forma breve e lúdica, a história segue do nascimento até a morte de um homem simples, que adorava a "roça" e que por um acaso se tornou chefe de trem.
As ilustrações são de Beatriz Nunes.  


terça-feira, 6 de março de 2012

CONVITE: LACANOAMERICANA: Recortes Brasilienses


               

            Em nome de IPB/Bsb, convidamos para a atividade de
abertura de 2012, na qual serão discutidos os trabalhos apresentados
pelos participantes de Brasília na última Reunião Lacanoamericana de
Psicanálise.



Data: 09 e 10 de março /2012

Local: Auditório do Edifício Multiclínicas, (SHLN, bl. J, térreo)



            Aos interessados em obter os textos previamente, estamos
enviando em anexo o arquivo com os trabalhos catalogados em ordem
alfabética, por autor. Para imprimi-los, basta selecionar e salvar em
Word.

            Acrescentamos aqui, em anexos separados, os trabalhos de
Priscila F. Costa e Renata Moraes que não tinham sido enviados
anteriormente.

            Abaixo, segue a programação.

Cordialmente,

Antonia Verdesio, Arlete Mourão, Josenita Costa e Rosana Aguiar,

P/Comissão de Eventos



PROGRAMAÇÃO



Dia 09/03 (sexta-feira)



19h às 21h30min: Mesa I

            - Ensino x Transmissão: qual dispositivo? – Arlete Mourão

            - O Sujeito e a Linguagem – Antonio Jaldo

            - Das palavras repetidas à fala – Marisa Brito

Coordenação: Arlete Mourão



Dia 10/03 Sábado



9h às 10h30min: Mesa II

            - Poesia Concreta e Psicanálise: uma reflexão sobre a
linguagem – Tainá

   Hilana

- O Real no lugar do 3 na narrativa de Guimarães Rosa – Patrícia Pinheiro

Coordenação: Marisa Brito



10h30min às 10h45min: Intervalo



10h45min às 12h15min: Mesa III

            - Traumas, Sonhos, Sofrimentos no enlace entre um Eu
despedaçado com o

   outro do acompanhamento terapêutico Um estudo de caso – Renata Morais

- Desejo, Gozo e Fantasia – Priscila F. Costa

Coordenação: Iara Beltrão



12h15min às 14h30 – ALMOÇO



14h30min:às 16h: Mesa IV

            - O silêncio do analista e o desafio histérico – Thessa Guimarães

            - Lalangue e o Final de Análise – Adriana Canut

Coordenação: Rosana Aguiar



16h às 16h15: INTERVALO



16h15 às 17h45 – Mesa V

            - Conexões Espelhadas – Gabriel Rosa e Paulo Gomes

            - O enigma corporal na clínica psicanalítica – Leonor Bicalho

Coordenação: Antonia Verdesio

sábado, 10 de dezembro de 2011

Para relacionar o Catch à UFC

Le catch, Pigalle, Paris


MITOLOGIAS
Roland Barthes

I
O MUNDO DO CATCH[1]

". . A verdade enfática do gesto nas grandes circunstâncias da vida"

Baudelaire


A virtude do catch é a de ser um espetáculo excessivo. Existe nele uma ênfase que devia ser a dos espetáculos antigos: Aliás, o catch é um espetáculo de ar livre, pois o que constitui o essencial do circo ou da arena não é o céu, (valor romântico reservado às festas mundanas), é o caráter denso e vertical dos espaços luminosos; do fundo das salas mais imundas de Paris, o catch participa da natureza dos grandes espetáculos solares, teatro grego e touradas: aqui e acolá, uma luz sem sombra elabora uma emoção sem disfarce.

Muita gente acha que o catch é um esporte ignóbil. O catch não é um esporte, é um espetáculo, e é tão ignóbil assistir a uma representação da Dor no catch, como ao sofrimento de Arnolfo ou de Andrômaca. Existe, evidentemente, um falso catch, pomposo, com as aparências inúteis de um esporte regular; mas esse não tem qualquer interesse. O verdadeiro catch, impropriamente chamado catch-amador, realiza-se em salas de segunda classe, onde o público adere espontaneamente à natureza espetacular do combate, como o público de um cinema de bairro. Essa mesma gente, em seguida, indigna-se por o catch ser um esporte falseado (o que, aliás deveria restringir a sua ignomínia). Ao público pouco importa em absoluto que o combate seja falseado ou não: e ele tem toda a razão. Entrega-se à primeira virtude, do espetáculo: abolir qualquer móbil ou conseqüência; o que lhe interessa é o que se vê, e não o que crê.

Este público sabe distinguir perfeitamente o catch do boxe; sabe que o boxe é um esporte jansenista, baseado na demonstração de uma excelência; pode-se apostar no resultado de um combate de boxe: no catch, isso não teria sentido. O match de boxe é uma história que se constrói sob o olhar do espectador; no catch, pelo contrário, cada momento é inteligível, prescindindo do desenvolvimento. O espectador não se interessa pelo progresso de um destino, espera a imagem momentânea de certas paixões. O catch exige, portanto, uma leitura imediata de significados justapostos, sem que seja necessário ligá-los. O futuro racional do combate não interessa ao amador de catch, ao passo que, pelo contrário, uma luta de boxe implica sempre uma ciência do futuro. Por outras palavras, o catch é uma soma de espetáculos, sem que um só seja uma função: cada momento impõe o conhecimento total de uma paixão que surge reta e só, sem jamais se estender em direção a um resultado que a coroe.

Assim, a função de um lutador de catch não é ganhar, mas executar exatamente os gestos que se esperam dele. Diz-se que o judô contém uma parte secreta de simbolismo; mesmo na eficiência, trata-se dê gestos contidos, 'precisos, mas curtos, desenhados corretamente, mas apenas traçados, sem volume. O catch, pelo contrário propõe gestos excessivos, explorados até ao paroxismo da sua significação. No judô, o lutador mal aflora o chão, rebola sobre si mesmo, desvia-se, esquiva a derrota, ou, se esta for evidente, abandona imediatamente a luta; no catch, o lutador prolonga exageradamente a sua posição de. derrota, caído, impondo ao público o espetáculo intolerável da sua impotência.

Esta função de ênfase é a mesma do teatro antigo, cuja força, língua, e acessórios (máscaras e coturnos) concorriam para fornecer a explicação exageradamente visível de uma Necessidade. O gesto do lutador de catch vencido, significando uma derrota que ele, em vez de ocultar, acentua e mantém como uma nota de órgão, corresponde à máscara antiga encarregada de significar o tom trágico do espetáculo. No catch, como nos teatros antigos, não se tem vergonha da dor, sabe-se chorar, saboreiam-se as lágrimas.

Cada signo do catch é, pois, dotado de uma limpidez total, visto que tudo deve ser compreendido no próprio instante em que se realiza. A evidência dos papéis assumidos pelos lutadores é de tal modo acentuada, que se impõe ao público assim que estes entram no ringue. Como no teatro, cada tipo físico exprime, em excesso, a tarefa a cumprir pelo combatente. Thauvin, qüinquagenário obeso e flácido, cuja hediondez assexuada inspira sistematicamente apelidos femininos, expõe, na sua carne, as características do ignóbil, visto que seu papel é figurar o que no conceito clássico do "salaud”[2] (conceito-chave de todos os combates de catch) se apresenta como organicamente repugnante. O nojo voluntariamente inspirado por Thauvin é, assim, particularmente completo enquanto signo: a fealdade não só serve para significar a baixeza, mas ainda coincide com uma qualidade particularmente repulsiva da matéria: a flacidez esbranquiçada de uma carne morta (o público chama Thauvin "la barbaque”[3]) de modo que a condenação apaixonada da multidão já não se elabora a partir de um juízo, mas forma-se no mais profundo de suas entranhas. O público adere, assim, untuosamente conforme à sua aparência física inicial: os seus atos corresponderão perfeitamente à viscosidade essencial do seu personagem.

O corpo do lutador é, assim, a primeira chave do combate. Sabe-se, desde o início, que todos os atos de Thauvin, as suas traições, crueldades e covardias, não decepcionarão a primeira imagem do ignóbil que ele apresenta: pode-se contar com ele para executar inteligentemente, e até ao fim, todos os gestos de uma certa baixeza informe, e para preencher assim a imagem do mais repugnante dos "salauds": o "salaud-pieuvre”[4]. Os lutadores de catch têm portanto um físico tão peremptório quanto o das personagens da Comédia italiana, que revelam, aberta e antecipadamente, pelos seus trajes e atitudes, o conteúdo futuro do seu papel: assim como Pantalão pode apenas ser um "corno" ridículo, Arlequim um criado astucioso, e o Doutor um pedante imbecil, assim Thauvin será sempre o traidor ignóbil, Reinières (louro grande, de corpo mole e cabelos desgrenhados) a imagem perturbante da passividade, Mazaud (galinho arrogante) a da fatuidade grotesca, e Orsano (exibicionista efeminado que aparece desde o início num roupão azul e rosa) a imagem duplamente picante de uma "salope"[5] vingativa (pois não penso que o público do Elysée-Montmartre conheça o Littré e considere o termo "salope" como masculino). O físico dos lutadores de catch institui portanto um signo de base, contendo, em germe, todo o combate. Germe esse que prolifera, pois a cada momento do combate, a cada situação, o corpo do lutador oferece ao público o maravilhoso divertimento do encontro espontâneo entre uma compleição e um gesto. As diferentes linhas de significação esclarecem-se umas às outras e constituem o mais inteligível dos espetáculos. O catch assemelha-se a uma escrita diacrítica: além da significação fundamental do seu corpo, o lutador dispõe de explicações episódicas, mas sempre bem vindas, ajudando a leitura do combate com seus gestos, atitudes e mímicas, que levam a intenção à sua máxima evidência. Nuns casos, o lutador triunfa com um ricto ignóbil, dominando sob os joelhos o adversário leal; noutros ostenta para a multidão um sorriso suficiente, anunciador de uma vingança próxima; noutros ainda, imobilizado por terra, bate violentamente com os braços no chão, para significar a todos o caráter intolerável da situação; enfim, dispõe um complicado conjunto de signos destinados a dar a entender que ele encarna, justamente, a imagem sempre divertida do sujeito intratável explorando à saciedade o seu descontentamento.

Trata-se, portanto, de uma verdadeira Comédia Humana, onde as nuances mais sociais da paixão (fatuidade, direitos, crueldade refinada, sentido do "pagar") encontram sempre, e felizmente, o signo mais claro que as possa recolher, exprimir, e levar triunfalmente até aos confins da sala. Compreende-se que neste ponto, já não o interessa que a paixão seja autêntica ou não. O que o público reclama é a imagem da paixão e não a paixão em si. Como no teatro, no catch também não existe o problema da verdade. Em ambos, o que se espera é a figuração inteligível de situações morais habitualmente secretas Este esvaziamento da interioridade, em proveito dos seus signos exteriores, este esgotamento do conteúdo pela forma, é o próprio princípio da arte clássica triunfante. O catch é uma pantomima imediata, infinitamente mais eficaz do que a pantomima teatral, visto que o gesto do lutador não necessita de nenhuma fábula, de nenhum cenário, isto é, não necessita de nenhuma transferência, para parecer verdadeiro.

Assim, cada momento do catch é como um álgebra que revela instantaneamente a relação entre uma causa e seu efeito figurado. Existe, sem dúvida, nos amadores de catch, uma espécie de prazer intelectual em ver funcionar com tanta perfeição a mecânica moral: certos lutadores, bons comediantes, divertem tanto quanto uma personagem de Molière, pois conseguem impor uma leitura imediata da sua interioridade. Armand Mazaud, lutador que encarna o tipo arrogante e ridículo (tal como se diz que Harpagon é um "tipo") entusiasma sempre a sala com o rigor matemático das suas transcrições, levando o desenho dos seus gestos até ao extremo limite de seu significado, e dando ao seu combate o arrebatamento e a precisão de uma grande disputa escolástica, em que estão em causa simultaneamente, o triunfo do orgulho e a preocupação formal da verdade.

O que assim se oferece ao público é o grande espetáculo da Dor da Derrota, e da justiça. O catch apresenta a dor do homem com todo o exagero das máscaras trágicas - o lutador que sofre sob o efeito de um golpe considerado cruel (um braço torcido, uma perna esmagada) ostenta a expressão excessiva do sofrimento; mostra o rosto exageradamente deformado por uma angústia intolerável, tal como uma Pietà primitiva. Compreende-se perfeitamente que no catch o pudor esteja deslocado, visto que é contrário à ostentação voluntária do espetáculo, a essa Exposição da Dor que é a própria finalidade do combate. Deste modo, todos os atos geradores de sofrimento são particularmente espetaculares, como um gesto de um prestidigitador que mostre o seu jogo sem disfarce: não se compreenderia uma dor que aparecesse sem causa inteligível; um gesto secreto, efetivamente cruel, transgrediria as leis não escritas do catch, e não teria nenhuma eficácia sociológica, tal como um gesto louco ou parasita. Aqui, pelo contrário, o sofrimento é infligido com limpidez e convicção, pois é preciso que todo mundo constate, não só que o homem sofre, mas ainda, e sobretudo, compreenda por que sofre. Aquilo a que os lutadores chamam uma "chave", isto é, uma figura qualquer que faz com que o lutador permaneça indefinidamente imobilizado e à mercê do adversário, tem precisamente como função preparar o espetáculo do sofrimento, de um modo convencional, portanto inteligível, e instalar metodicamente as condições do sofrimento: a inércia do vencido permite que o vencedor (momentâneo) se instale na sua crueldade e transmita ao público essa preguiça aterradora, típica do torturador seguro da execução progressiva dos seus gestos. O catch é o único esporte que oferece uma imagem inteiramente exterior da tortura: esfregar violentamente o focinho do adversário impotente ou percorrer-lhe a coluna vertebral com um punho áspero, profundo e regular, executar pelo menos a superfície visual destes gestos. Mas, uma vez mais, trata-se apenas de uma imagem e o espectador não deseja o sofrimento real do lutador, saboreia unicamente a perfeição de uma iconografia. Não é verdade que o catch seja um espetáculo sádico: é apenas um espetáculo inteligível.

Existe outra figura ainda mais espetacular do que a "chave", é a "manchette", golpe com os antebraços, murro larvado no peito do adversário, produzindo um ruído frouxo, a queda mole e ostensiva do corpo vencido. Na "manchette" a catástrofe atinge a sua máxima evidência, de tal modo que, no seu ponto extremo, o gesto aparece apenas como um símbolo. É. ir longe demais, sair das regras morais do catch, onde todo o signo deve ser excessivamente claro, mas não deve deixar transparecer a sua intenção de clareza. E o público grita "marmelada", não porque lamenta a ausência de sofrimento efetivo, mas porque condena o artifício: como no teatro, sai-se do jogo tanto por excesso de sinceridade como por excesso de representação.

Já se mencionou o partido que os lutadores tiram de um certo estilo físico, composto e explorado para desenvolver perante o público uma imagem total da Derrota. A moleza dos grandes corpos brancos que se abatem no chão subitamente, ou desmoronam contra as cordas, esbracejando, a inércia dos lutadores maciços lamentavelmente jogados por todas as superfícies elásticas do ringue significa mais do que tudo, clara e apaixonadamente, a humilhação exemplar do vencido. Destituído de qualquer energia, o corpo do lutador não é mais que uma massa imunda esparramada no chão, suscitando frenesis de animosidade e júbilo. Temos aí um paroxismo de significação, à maneira dos espetáculos antigos, que não pode deixar de lembrar-nos o luxo de intenções dos triunfos latinos. Noutros momentos, é ainda uma figura antiga que surge da relação física entre os lutadores: figura do suplicante, do homem indefeso, dominado, de joelhos, braços erguidos sobre a cabeça, e lentamente vergado pela tensão vertical do vencedor. No catch, contrariamente ao que acontece no judô, a Derrota não é um signo convencional que se abandone logo que atingido: não é um resultado, mas um processo exibitório que retoma os antigos mitos do sofrimento e da humilhação pública: a cruz e o pelourinho. O lutador de catch é como que crucificado, em plena luz, à vista de todos. Ouvi dizer, a propósito de um lutador estendido no chão: "está morto o pobre Jesus, ali, crucificado", e estas palavras irônicas desvendam as raízes profundas de um espetáculo que executa os gestos das mais antigas purificações.

Mas o catch tem essencialmente como função minar um conceito puramente moral: a justiça. A Idéia de "pagar pelo que se faz" é essencial no catch, e o "faça-o sofrer" da multidão significa, antes de mais nada "faça-o pagar". Trata-se pois, é claro, de uma justiça imanente. Quanto mais a ação do "salaud" é vil, tanto mais a justa vingança alegra o público. Se o traidor - que é, naturalmente, um covarde - se refugia atrás das cordas, invocando descaradamente a ilegalidade, e é impiedosamente agarrado e recolocado no ringue, a multidão) delira ao ver a regra violada em proveito de um castigo merecido. Os lutadores sabem bem como incentivar o poder de indignação do público, propondo-lhe o limite máximo do conceito de justiça, zona extrema do confronto, em que, basta que se traiam um pouco mais as regras, para que se abram as portas de um mundo frenético. Para um amador de catch, não há nada mais belo do que o furor vingativo de um lutador traído que se lança com paixão, não sobre um adversário vitorioso, mas sobre a imagem flagrante da deslealdade. Naturalmente, é sobretudo o movimento da justiça que interessa, muito mais do que o seu conteúdo: o catch é, entes de mais nada, uma série quantitativa de compensações (olho por olho, dente por dente). Isto explica o fato das reviravoltas de situações comportarem uma espécie de beleza moral para os amadores: gozam-nas como um episódio romanesco bem-vindo, e quanto mais é acentuado o contraste entre o êxito de um golpe e a reviravolta do destino, tanto mais o sucesso de um lutador está próximo do seu declínio, e tanto mais o mimodrama é considerado satisfatório. A Justiça é portanto o corpo de uma transgressão; é por haver uma Lei que o espetáculo das paixões que à transgridem adquirem todo o seu valor.

Compreende-se assim, que, aproximadamente, em cada cinco combates de catch, um só seja "correto". Uma vez mais, é preciso que se entenda que a “correção" é aqui uma função ou um gênero, como no teatro: a regra não constitui absolutamente uma sujeição real, mas a aparência convencional da correção.

Assim, na realidade, um combate "correto" é "apenas um combate exageradamente cortês: os combatentes afrontam-se aplicadamente mas sem rancor, sabem controlar suas paixões, não se obstinam em liquidar o adversário, param assim que se lhes dá ordem de interromper o combate, e cumprimentam-se no fim de um lance particularmente violento, durante o qual, no entanto, permaneceram leais um ao outro. Deve-se naturalmente entender que todas essas cortesias são evidenciadas perante o público pelos sinais mais convencionais da lealdade: apertar a mão, erguer os braços, abandonar ostensivamente uma "figura" estéril que prejudicaria a perfeição do combate.

Inversamente, a deslealdade só transparece através de figuras excessivas: dar um pontapé no vencido, refugiar-se atrás das cordas invocando ostensivamente um direito puramente formal, recusar um aperto de mão do adversário antes e depois do combate, aproveitar a pausa oficial para o atacar à traição, pelas costas, dar-lhe um golpe proibido sem que o árbitro veja (golpe que evidentemente só tem valor e função porque, de fato, metade da sala pode vê-lo e indignar-se). Sendo o Mal o clima natural do catch, o combate "correto" tem sobretudo um valor de exceção; surpreende o freqüentador habitual que lhe presta homenagem (são corretos pra burro, esses aí); sente-se subitamente comovido com a bondade geral do mundo, mas sem dúvida morreria de tédio e de indiferença se os lutadores não regressassem rapidamente à orgia dos maus sentimentos, que são os únicos a produzir bom catch.

Levado ao extremo, o catch "correto" só poderia conduzir ao boxe ou ao judô, enquanto que o verdadeiro catch deve a originalidade a todos os excessos que fazem dele um espetáculo e não um esporte. O fim de uma luta de boxe ou de um encontro de judô é seco, como o ponto que conclui uma demonstração. O ritmo do catch é totalmente diferente, pois o seu significado natural é o de uma ampliação retórica: a ênfase das paixões, o renovar dos paroxismos, a exacerbação das réplicas, só podem levar à mais barroca das confusões. Certos combates, entre os melhores, são coroados por uma algazarra final, uma espécie de "fantasia" desenfreada em que são abolidos os regulamentos, as leis do gênero, a censura do árbitro e os limites do ringue, arrastados numa desordem triunfante que se espalha pela sala e mistura indiscriminada ente os lutadores, os massagistas, o árbitro e os espectadores.

Já notamos que na América, o catch representa uma espécie de combate mitológico entre o Bem e o Mal (de natureza parapolítica, sendo o mau lutador sempre considerado como um Vermelho). O catch francês corresponde a uma mitificação totalmente diferente, de ordem ética e não política. O que o público procura aqui é a construção progressiva de uma imagem eminentemente moral: a do "salaud" perfeito. Vai-se ao catch para assistir às aventuras renovadas de um personagem principal, único, permanente e multiforme como Guígnol ou Scapin, criador inventivo de figuras inesperadas, e, no entanto, sempre fiel à sua função. O "salaud" revela-se como um "tipo" de Molière, ou um retrato de La Bruyère, isto é, como uma entidade clássica, como urna essência, cujos atos não são mais do que epifenômenos significativos dispostos no tempo. Este caráter estilizado não pertence a nenhuma nação nem a nenhum partido, e quer o lutador se chame Kuzchenko (que recebeu o apelido de Bigode por causa de Stalin), Yerpazian, Gaspardi, jo Vignola ou Nollières, o freqüentador habitual supõe-lhe apenas uma pátria: a "correção".

Em que consiste um "salaud" para esse público, ao que parece, composto em parte por "marginais"? Trata-se, essencialmente, de um instável, que só admite as regras quando estas lhe são úteis, e transgride a continuidade formal das atitudes. É um homem imprevisível, logo, associal. Refugia-se na Lei quando pensa que esta lhe é propícia, e a trai quando lhe convém; tão depressa nega o limite formal do ringue e continua a bater no adversário protegido legalmente pelas cordas, como restabelece esse limite e reclama a proteção do que, instantes antes, não respeitava. É esta inconseqüência, mais do que a traição ou a crueldade, que põe o público fora de si: melindrado na sua lógica e não na sua moral, considera a contradição de argumentos a mais ignóbil das faltas. Um golpe interdito só deixa de ser correto se destrói um equilíbrio quantitativo e perturba o jogo rigoroso das compensações; o que o público condena não é de modo algum a transgressão de pálidas regras oficiais, é a tibieza da vingança e da penalidade. Assim, nada excita mais a multidão do que o pontapé enfático dado a um "salaud" vencido; a alegria de castigar atinge o auge quando se apóia sobre uma justificação matemática; o público solta então as rédeas ao seu desprezo: já não se trata de um "salaud" mas de uma "salope", gesto oral da última das degradações.

Uma finalidade assim precisa exige que o catch seja exatamente o que o público espera dele. Os lutadores, homens de grande experiência, sabem perfeitamente infletir os episódios espontâneos do combate no sentido da imagem que o público criou, para si próprio, dos grandes temas maravilhosos de sua mitologia. Um lutador pode irritar ou repugnar, mas nunca decepciona, visto que executa sempre até o fim o que o público espera dele, através de uma solidificação progressiva dos signos. No catch tudo o que existe, existe totalmente, não há símbolos nem alusões, tudo é dado exaustivamente; não deixando nada na sombra, o gesto elimina os significados parasitas e apresenta ritualmente ao público uma significação pura e plena, esférica, tal como uma Natureza. Esta ênfase nada mais é do que a imagem popular e ancestral da inteligibilidade perfeita do real. O que é mimado pelo catch é, portanto, uma inteligência ideal das coisas, é uma euforia dos homens, preservados durante um certo lapso de tempo da ambigüidade constitutiva das situações cotidianas, e instalados na visão panorâmica de uma Natureza unívoca, onde os signos corresponderiam enfim às causas, sem obstáculo, sem fuga e sem contradição.

Quando o herói ou o vilão do drama, o homem que há minutos se vira possuído de um furor moral, desenvolvido até à dimensão de uma espécie de signo metafísico, sai da sala de catch, impassível, anônimo, levando na mão uma pequena mala e de braço dado com a mulher, ninguém pode duvidar de que o catch contém o poder de transmutação que é próprio do Espetáculo e do Culto. No ringue, e no mais profundo da sua ignomínia voluntária, os lutadores são deuses, porque são durante alguns instantes a chave que abre a Natureza, o gesto puro que separa o Bem do Mal e desvenda a figura de uma justiça enfim inteligível.