segunda-feira, 30 de julho de 2012

Querido Stephen,


A escrita de James Joyce lhe rendeu o título de inventor do romance moderno. Mas este criador foi um "deus" endiabrado, um tanto controverso,  apontado como ilegível, em princípio censurado em sua terra, inclusive por tipógrafos que se recusavam a imprimir seu texto, por considerá-lo devasso. O que faz Joyce, então, na literatura infantil?
Uma carta enviada, em 1936, a seu neto, Stephen Joyce, transformou-se no livro "O gato e o Diabo"¹, editado no Brasil  pela Cosac Naify.
Uma carta (une lettre), a letra de Joyce ou "sua arte" como diria Lacan²  , é sobre um certo diabo que fala uma língua inventada por ele mesmo, a" bellysbabble", além de "um monte de outras línguas" e que resolve fazer surgir uma "ponte" para que os habitantes da pequena cidade de Beaugency (na França) pudessem atravessar o Rio Loire. 
E o gato? Ah, tem que ler o livro para entender que diabos ele faz nessa história!!!
O que fará a criança leitora com esse texto? Imagine! As endiabradas então...
Em todo caso eu sei que não vão estabelecer essa ponte medonha que surgiu na minha cabeça, mas plim, aqui está ela:
O caso é que a "bellysbabble", o "monte de línguas" e a "ponte" me fazem pensar no Sinthoma e no "nó bo". Lacan² diz: "Joyce acaba por ter visado por sua arte, de maneira privilegiada o quarto termo chamado de sinthoma" (p.38). Essa ideia lacaniana é de que há algo na escrita de Joyce que se configura como uma sustentação para os três registros do inconsciente, amostrados no nó borromeano, a saber: o Real, o Simbólico e o Imaginário. O Sinthoma é o quarto elo que sustenta o Nó Borromeano. "Uma escrita é, portanto, um fazer que dá suporte ao pensamento" (Lacan², p.140). 
A escrita de Joyce se configura como sustentação porque, na concepção lacaniana, ela vai escrever esse nó, e assim sustentar a possibilidade de ver como ele funciona. Lacan chama o RSI de nó bo, se referindo a alguma coisa evocada em algum  lugar da  literatura joyceana: "Onde sobre o monte Nebo a Lei nos foi dada." (Lacan², citando Joyce, p. 140). 
O que seria a "ponte", em "O gato e o Diabo"? O sinthoma tal qual pensado por Lacan? Será que isso se sustenta?
E o "monte de línguas", a invenção da "bellysbabble": poderiam se conformar como o "nó bo"? 
Se assim for, as línguas se configuram nessa escrita do RSI e a ponte - o sinthoma, como aquilo que sustenta e comunica essa escrita. O sinthoma relaciona. Freud com a invenção da psicanálise, no mundo moderno, relacionou a linguagem ao sexo. Lacan afirma que Joyce é um a-Freud, jogando com as palavras, para não perder o costume - "affreux", medonho em francês. Esse "a" é o objeto pequeno a, que concerne a uma relação. 
Ora, em "O gato e o Diabo", Lelis, o ilustrador, dá a Joyce seu lugar demoníaco, medonho (eu diria), ou seja, aquilo que ele faz com sua escrita: uma relação.

por Patrícia Pinheiro


Bibliografia:
1. Joyce, James. O gato e o Diabo. {The cat and The Devil]. Tradução de Lygia Bojunga. Ilsutação de Lelis. São Paulo, Cosac Naify, 2012.
2. Lacan, Jacques. O Seminário, livro 23: o sinthoma, 1975-1976. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Sergio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.


Nenhum comentário:

Postar um comentário